POESIA

MIA COUTO

A viagem da Viagem

 

Há muito anos que sonhava escrever uma letra que fosse musicada por João Gil. Mais do que escrever “para” eu querer escrever “com” o músico. Um dos momentos da criação artística mais prazeroso é o sentimento do encontro. No caso da escrita literária isso significa romper esse falso círculo de silêncio e solidão e junto com outros artistas produzir outras linguagens, outras sintonias. Toda a palavra foi música antes de nascer. Mesma que essa música fosse apenas silêncio. Um poema que se converte em música é um filho que regressa a casa. Essa casa fica engrandecida por essa visita que de quem é, ao mesmo tempo, familiar e estranho.

 

Durantes anos alimentei o sonho de poder trabalhar com um dos mais originais e versáteis compositores portugueses. Essa oportunidade finalmente surgiu e eu constatei, com felicidade, que João Gil tinha a mesma vontade de criarmos algo em conjunto. No início, esse percurso foi errático, com encontros fortuitos entre poesia e música. Aos poucos, porém, fomos criando a ideia de trabalharmos sobre um texto mais estruturado, uma narrativa que fizesse lembrar os grandes esquecimentos com que se foi fazendo a História da humanidade: a escravatura (somos todos descendentes de escravos ou de escravocratas), as grandes migrações (somos todos de um outro lugar), as injustiças que foram naturalizadas, as viagens cuja épica foi quase sempre erguida numa narrativa que convertia o Outro numa criatura invisível.

 

Foi assim que nasceu esta “Viagem pelo Esquecimento”. Nós mesmos, o poeta e o músico, fomos trocando viagens entre Moçambique e Portugal. O projeto, ele próprio, foi viajando. E ganhou novas roupagens, emigrou para outros arranjos e formatos. A contribuição da Ana Mesquita foi essencial na criação da linguagem visual que funcionasse como a terceira margem deste rio. Sem o seu empenho este barco não teria chegado a bom porto. Estou certo de que esta “Viagem pelo Esquecimento” está pronta para sair do cais e navegar, com desejo de encontros e abraços, através de um tempo de sombras e confinamento.

 

Mia Couto

Maputo, 01 de Março de 2021